Capital diversa
A capital colombiana oferece uma ampla gama de experiências culturais e de entretenimento focadas na comunidade LGBT. Uma moradora da capital mostra ao mundo a forma como ela descobriu essa cidade diversa.
Nos últimos anos, a capital da Colômbia se abriu para todos. Mas nem sempre foi tão fácil encontrar esse espaço. Há pouco mais de vinte anos, quando eu tinha dezoito anos e me apaixonei pela primeira vez por uma mulher, junto com um amigo que também tinha se apaixonado por um homem, comecei a procurar espaços onde pudéssemos estar próximos a pessoas como nós; nós nos sentíamos como dois barcos flutuando sozinhos em alto mar.
Ainda faltavam muitos anos para que toda uma oferta de experiências focadas na comunidade LGBT fosse desenvolvida; todos à nossa volta, colegas da faculdade ou amigos que surgiam no caminho, eram heterossexuais ou, pelos menos diziam ser. E configurados a partir do berço em uma masculinidade e uma feminilidade definidas em termos exatos e com limites precisos, precisávamos nos ver refletidos em outros como nós para terminar de entender quem éramos.
Ele era gay e eu era lésbica; nossas preferências sexuais recém-aceitas nos definiram daquela forma, mas não sabíamos bem o que era aquilo, no que consistia. Gay e lésbica. As duas palavras nos levaram ao bairro Chapinero, o bairro que hoje continua sendo um ícone da comunidade, apesar de que em uma cidade com mais de dez milhões de habitantes, a vida noturna gay existe em todas as localidades.
Devo admitir que meu amigo teve muito mais sucesso do que eu. No final dos anos 90, Chapinero estava cheio de bares gays e havia apenas dois bares para lésbicas. Embora a grande maioria dos bares gays proibiam a entrada de mulheres, meu amigo e eu fomos encontrando espaços onde podíamos ficar juntos.
Por alguns anos e até a chegada do século XXI, eu sempre me perguntava onde estavam as outras, aquelas da minha idade, garotas lésbicas na casa dos vinte, onde elas se reuniam? Como e quem eram elas? O panorama era realmente angustiante. Um casal de namoradas aqui e outro acolá, outras garotas espalhadas entre os grupos de gays, onde a grande maioria eram amigas heterossexuais que os acompanhavam.
Na companhia do meu amigo, comecei a fazer outros amigos e eles gradualmente trouxeram outras amigas, e lá continuei, paciente, de bar em bar, como alguém esperando uma revolução. Um dia, abri os olhos e percebi que ao redor da fogueira de um dos bares que frequentávamos havia tantas mulheres quanto homens. Era o ano de 2002 e massivamente as garotas da minha geração, o milagre que eu esperava há muito tempo, começaram a sair e curtir a noite. Foi nos bares, naqueles espaços dedicados a conversar, paquerar e dançar, que comecei a criar laços que transcendiam a noite, fiz amizades, me apaixonei muitas vezes e tive a sensação de que nossa irmandade, nossos romances e namoricos não eram diferentes aos das demais pessoas. A ilusão durava até chegar nos espaços públicos, onde soltávamos nossas mãos e agíamos como amigas, tal qual deveríamos ser. As expressões públicas de afeto pela comunidade LGBT em Bogotá estavam vedadas; a forte desaprovação social e o medo nos obrigavam a isso.
Fui embora do país por vários anos e, quando voltei em 2009, o panorama estava começando a mudar e foram precisamente as mãos que me avisaram: nas ruas de Bogotá, casais de garotas, casais de garotos saem de mãos dadas. A imagem que à primeira vista poderia parecer insignificante tinha uma grande carga simbólica. Nesse mesmo ano, a Câmara Municipal da cidade aprovou a política para garantir os direitos do setor e consolidar desenvolvimentos em todas as dependências institucionais. A cidade conservadora de Bogotá teve que incorporar em sua imaginação a existência de uma comunidade que tinha direitos e que, como qualquer outro cidadão, expressava não apenas seus sentimentos, seus afetos, mas também seus desejos de pertencer e de ser plenamente aceito.
Da mesma forma, eu precisava do espaço para isso, não estar reduzida aos bares, mas poder transitar em todos os âmbitos, incluindo a criação artística como veículo de expressão e reafirmação.
Há 11 anos eu moro com minha parceira. A Bogotá que conheci, aquela em que eu tinha que fingir publicamente ser somente amiga das minhas parceiras sentimentais, não existe mais. Demos as mãos, um gesto que durante anos constituiu para nós um ato político, tornou-se tão natural quanto respirar; é agora o nosso jeito de percorrer esse setor da cidade onde vivemos.
Nosso apartamento está localizado no bairro La Macarena, uma vizinhança como poucas que restam em uma cidade tão grande quanto Bogotá, cheia de pequenos restaurantes e locais comerciais (nem sequer temos restaurantes de redes conhecidas), cafés, padarias, mercadinhos, loja de produtos naturais e orgânicos, várias galerias de arte e uma livraria café. Os cerros orientais nos emolduram e sempre, acima de nossas cabeças e se o céu estiver limpo, podemos ver bem a Igreja de Monserrate. Nas proximidades fica o mercado municipal La Perseverancia, onde fazemos todas as nossas compras, conhecemos a cada um dos vendedores de frutas, flores e legumes, da mesma forma que conhecemos as cozinheiras da praça de alimentação, que são uma referência da culinária tradicional colombiana.
A vida noturna de Bogotá é uma das atrações da cidade. Além de restaurantes de todas as gastronomias, cafés e bares, a festa é vivida intensamente em muitos ritmos. A noite bogotana está aberta para todos e todas.
La Candelaria, o centro histórico, fica a quinze minutos a pé onde estão localizados a grande maioria dos museus e monumentos históricos e também o lugar onde parece possível que tudo, sem distinções e categorias coexista pacificamente, provando que a uniformidade não existe em Bogotá.
A carrera sétima, da rua 21 até a Praça de Bolívar a rua é só para pedestres e percorrê-la significa encontrar vendedores, indígenas, rappers, roqueiros, punks, torcedores de futebol, homens estátua, trabalhadores de escritório, estudantes, donas de casa, turistas, músicos, dançarinos de break, dançarinos de tango e salsa, retratistas e pintores que fazem grandes desenhos com giz no cimento, casais de homens, casais de mulheres, famílias de todos os tipos que vivem na cidade. Uma contínua explosão visual e auditiva sem tréguas que estimulo após estimulo nos faz entender a natureza híbrida desta cidade habitada por pessoas de todo o país.
Vivemos a cidade inteira juntas, embora seria absurdo dizer que em Bogotá (ou em qualquer lugar do mundo) não exista discriminação contra a comunidade LGBT, poderia sim afirmar que aqueles que pertencem a ela pararam de se esconder e esse ato teve repercussões em um aumento do pluralismo, do respeito pelas diferenças e de uma forte atividade cultural que cresce ano após ano.
Prova disso é a convocação massiva deste ano para a parada do Orgulho LGBT, realizada todo mês de junho desde 1996 e que mostrou a força que a comunidade vem adquirindo. Três frentes: a Mesa LGBT de Bogotá, a Mesa LGBT e a Rede Comunitária Trans conseguiram reunir pessoas de todos os setores da cidade que caminharam juntas do Parque Nacional até a Praça de Bolívar.
As primeiras manifestações que participei no final dos anos 90 foram menos numerosas e pareciam ser reservadas apenas para certos setores da sociedade; o mais correto seria dizer que as classes média e alta não participavam da manifestação porque seus preconceitos e estereótipos de classe os levavam a pensar que não queriam ser identificados com a comunidade LGBT ou com os ativistas que, desde aquele ano davam a cara por nós.
Este ano vi famílias de todas as classes sociais na manifestação e junto a mim, vários dos meus amigos heterossexuais carregavam bandeiras e cantavam discursos em que celebravam a diversidade.
Há dois anos é realizado também durante o mês de junho o Festival da Igualdade, um espaço no qual são realizadas atividades culturais e esportivas que buscam promover uma cultura cidadã baseada no reconhecimento, garantia e restituição do direito a uma vida livre de violência, de discriminação com base na identidade de gênero, orientação sexual, etc.
Os festivais de cinema e literatura são outros espaços importante de expressão; em 2019, foi realizada a 19ª edição do Ciclo Rosa, um espaço que ocorre anualmente no início de agosto e que, além de uma amostra cinematográfica, realiza encontros de formação e laboratórios de criação, além de performances.
A FILBO (Feira Internacional do Livro de Bogotá), um dos eventos literários mais importantes da cidade, trabalha há vários anos em associação com a Diretoria de Diversidade Sexual da Secretaria de Planejamento, a fim de abrir o espaço e sua programação para a diversidade sexual e de gênero, a partir da perspectiva da expressão artística, cultural, acadêmica, humanística e intelectual.
Ano após ano, escritores, acadêmicos e ativistas LGBT participam de conversas nas quais questões de gênero são colocadas em cima da mesa com o objetivo de facilitar reflexões a partir da dimensão artística e em toda a extensão dos espaços da vida pública.
Desde que eu tinha dezoito anos até hoje, Bogotá se tornou uma cidade mais inclusiva; os bares do setor do bairro Chapinero são cada vez mais variados e a grande maioria se caracteriza por ter suas portas abertas a todos os tipos de público. Eles ainda continuam sendo um espaço importante para a interação da comunidade, não são mais uma trincheira, mas sim uma amostra de como na Colômbia a festa é um assunto sério.
Embora no bairro Chapinero esteja localizada a maior discoteca para a comunidade LGBT da América Latina, o setor está repleto de bares de todo os tipos. Pelas portas se escuta salsa, merengue, eletrônica, rock, baladas clássicas em espanhol e inglês, reggaeton e champeta.
Existem bares especializados em um tipo de música e público, como os bares de osos, embora o que reine na balada seja o crossover. Muitos dos bares apresentam shows de Drags e cabaré; a noite Drag em Bogotá é legendária e o voguing estão no auge, graças a grupos como Las Tupamaras, que inclusive em 2019 participaram no Salão Nacional de Artistas.
A comunidade LGBT se integrou em Bogotá; a oferta se amplia a restaurantes, bares e discotecas do resto da cidade, da mesma forma que os festivais literários, amostras artísticas e cinematográficas.
Somos uma comunidade diversificada que se resistiu ao isolamento e à discriminação. Ainda há um longo caminho a ser percorrido, mas os esforços de muitos ativistas que trabalharam e continuam trabalhando pelos direitos da comunidade, bem como a atitude das pessoas que pertencem a ela e criaram uma realidade na qual fomos aprendendo a coexistir em nossas diferenças, de forma aberta.
No “Seminário Cuir: ressignificações comunitárias”, organizado em setembro de 2019 pela aliança entre os grupos La Esquina, Red Comunitaria Trans, Purple Train Arts e Las Callejeras, para o qual fui convidada a falar sobre o feminismo cyborg de Donna Haraway, a ideia do intercambio como base da comunicação humana assumiu um novo significado para mim.
Imersa como tenho estado desde que voltei a morar em Bogotá nas dinâmicas da comunidade LGBT, não tinha parado para pensar em como as barreiras que historicamente mantiveram a comunidade dividida, mudaram desde a raiz graças a iniciativas como essas e como resultado da Política Pública LGBT, em operação há 12 anos. O panorama da vida da comunidade em Bogotá mostra espaços cada vez mais diversos, de interação e diálogo cada vez menos divididos.
A capital cosmopolita da arte, da gastronomia e da excitante vida noturna também é a capital da diversidade. Existem muitas razões para que todos e todas se encontrem em Bogotá.